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  • Segunda à Sexta

Receita distorce palavra do Supremo sobre Funrural e pode induzir a erro

Em solução de consulta, a Receita Federal afirma, de forma equivocada, que o Funrural cobrado do adquirente da produção rural também foi declarado constitucional pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário 718.874/RS.

A Solução de Consulta Cosit 92, publicada em 20 de agosto, apresenta o entendimento oficial da Secretaria da Receita Federal sobre a cobrança do Funrural contra as pessoas jurídicas que adquirem as mercadorias do produtor rural pessoa física. Essa posição já havia sido vislumbrada no Parecer Cosit 19, de 26 de setembro de 20171, e agora, com a SC 92/18, o Fisco responde especificamente se a responsabilidade das empresas que compram do produtor rural foi extinta pela Resolução do Senado 15/2017, que suspendeu a eficácia de vários dispositivos da Lei 8.212/91 relacionados ao Funrural.

Dentre os dispositivos suspensos está o inciso IV, do artigo 30, da Lei 8.212/91, com redação dada pela Lei 9.528/97, que qualificou o adquirente da produção como sub-rogado pela obrigação do produtor rural — o que, na prática, significa que ele está obrigado a descontar e recolher o Funrural do fornecedor quando pessoa física.

“IV – a empresa adquirente, consumidora ou consignatária ou a cooperativa ficam sub-rogadas nas obrigações da pessoa física de que trata a alínea “a” do inciso V do art. 12 e do segurado especial pelo cumprimento das obrigações do art. 25 desta Lei, independentemente de as operações de venda ou consignação terem sido realizadas diretamente com o produtor ou com intermediário pessoa física, exceto no caso do inciso X deste artigo, na forma estabelecida em regulamento”.

O contribuinte por certo lançou mão da consulta para entender por que a Receita Federal continuava a cobrar o Funrural, já que o dispositivo que a autorizava a tanto tinha sido defenestrado pelo Senado desde setembro de 2017. E para esclarecer essa falta de base legal, a Receita Federal respondeu que a resolução efetivamente suspendia os dispositivos que mencionava — o artigo 12, inciso V; artigo 25, incisos I e II; e artigo 30, inciso IV, da Lei 8.212/91, todos com a redação atualizada até a Lei 9.528/97 — dentre eles, inclusive, a sub-rogação do adquirente.

No entanto, essa suspensão encontrava limites no pronunciamento do STF no Recurso Extraordinário 363.852/MG. Nesse julgamento, a suprema corte declarou esses dispositivos inconstitucionais, porque à época do seu advento a Constituição Federal ainda não tinha sido alterada pela Emenda Constitucional 20/98, mas não abordou os dispositivos trazidos pela Lei 10.256/01, que deram nova redação ao artigo 25, da Lei 8.212/91 e fora promulgada na vigência da referida EC 20/98.

As alterações trazidas pela Lei 10.256/01, como se sabe, foram uma tentativa de reinstituir o Funrural, na vigência da EC 20/98, corrigindo a falha da lei anterior. As alterações trazidas por essa lei só foram analisadas pelo Supremo Tribunal no Recurso Extraordinário 718.874/RS, quando a corte reverteu seu entendimento e declarou a constitucionalidade do Funrural.

Sendo a resolução vinculada ao primeiro julgamento, a Receita Federal declarou que a suspensão seria dos dispositivos vigentes no período anterior à promulgação da Lei 10.256/01 — o que na prática é o mesmo que afirmar a ineficácia da resolução em relação ao Funrural cobrado hoje.

“14. Desse modo, se faz necessário a presente interpretação, no sentido de esclarecer que a contribuição social do empregador rural pessoa física, incidente sobre o produto da comercialização da produção, está suspensa, nos termos da Resolução do Senado n.º 15, de 2017, tão somente em relação ao período anterior à Lei n.º 10.256, de 2001”.

A resposta à consulta do contribuinte poderia ter cessado nesse ponto, afirmando que a resolução só tem efeitos até o advento da Lei 10.256/01, pois vinculada aos dispositivos que o STF afastou no julgamento do Recurso Extraordinário 363.852/MG. No entanto, a Receita Federal se serve da consulta do contribuinte para disseminar a tese de que o STF, no julgamento do Recurso Extraordinário 718.874/RS, em sede de repercussão geral, teria chancelado o dever da empresa adquirente da produção rural reter/recolher o Funrural, de alguma forma reconstitucionalizando o artigo 30, IV, da Lei 8.212/91.

A SC 92/18 extrapola os limites do questionamento proposto na consulta e põe palavras na boca do contribuinte, afirmando que sua dúvida na verdade não é sobre uma interpretação da resolução, mas acerca do julgamento do STF.

“15. A dúvida exposta pela consulente é se o instituto da sub-rogação prevista no art. 30, IV, da Lei n.º 8.212, de 1991, não mais existiria, em virtude dos efeitos da Resolução do Senado n.º 15, de 2017, que teria suspenso a sua execução. Ocorre que conforme relatado previamente, houve a declaração de constitucionalidade da contribuição social do empregador rural pessoa física através do RE n.º 718.874/RS. A dúvida a ser confrontada é se esta última decisão do STF se restringe a contribuição referida no art. 25 da Lei n.º 8.212, de 1991, não abarcando o instituto da sub-rogação”.

Esse expediente de tentar limitar os efeitos da resolução a partir do que foi decidido no Recurso Extraordinário 718.874/RS é trágico, pois o STF não tratou da responsabilidade do adquirente por sub-rogação nesse caso. E esse tema não constou da tese fixada pela corte suprema em sede de repercussão geral, o que implica na manutenção do entendimento firmado nos recursos extraordinários 363.852/MG e 596.177/RS, que efetivamente trataram do artigo 30, IV, da Lei 8.212/91, ou, em outras palavras, não houve inovação no Recurso Extraordinário 718.874/RS para os adquirentes que pudesse ser interpretada pela Receita Federal nessa solução de consulta.

No Recurso Extraordinário 718.874/RS foi firmada a seguinte tese:

“É constitucional formal e materialmente a contribuição social do empregador rural pessoa física, instituída pela Lei 10.256/01, incidente sobre a receita bruta obtida com a comercialização de sua produção”.

Sem dúvida, o STF declarou a constitucionalidade do Funrural enquanto contribuição social imposta ao produtor rural empregador pessoa física, mas daí não se pode depreender que essa mesma contribuição possa ser validamente cobrada de terceiro, que adquire a produção rural do contribuinte. A ata de julgamento retrata bem a tese acatada em uníssono pelo STF enquanto órgão colegiado, superadas as diferença de entendimento que naturalmente se verificam na leitura dos votos individuais.

“Decisão: O Tribunal, por maioria, apreciando o tema 669 da repercussão geral, conheceu do recurso extraordinário e a ele deu provimento, vencidos os Ministros Edson Fachin (Relator), Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio e Celso de Mello, que negavam provimento ao recurso. Em seguida, por maioria, acompanhando proposta da Ministra Cármen Lúcia (Presidente), o Tribunal fixou a seguinte tese: ‘É constitucional formal e materialmente a contribuição social do empregador rural pessoa física, instituída pela Lei 10.256/2001, incidente sobre a receita bruta obtida com a comercialização de sua produção‘, vencido o Ministro Marco Aurélio, que não se pronunciou quanto à tese. Redator para o acórdão o Ministro Alexandre de Moraes. Plenário, 30.3.2017”.

Existe um abismo lógico no raciocínio da SC 92/18, pois o fato de a contribuição imposta ao produtor empregador rural ser constitucional não implica na constitucionalidade da cobrança dessa contribuição contra o adquirente. São, na verdade, cobranças com dois sujeitos passivos distintos, qualificados como contribuintes na forma do artigo 121, parágrafo único, I, do CTN2: o produtor empregador rural, contribuinte original do Funrural; e o adquirente da produção, por sub-rogação. Dessa forma, é plenamente possível que a cobrança do Funrural seja constitucional para o produtor rural sem o ser para a empresa adquirente — adiantando desde já que há argumentos fortes no sentido de que a cobrança contra o adquirente remanesce sendo inconstitucional, mas que serão melhor detalhados ao final deste texto.

Além disso, ainda que a leitura da tese fixada no acórdão não deixe dúvida quanto à falta de exame da “sub-rogação” do adquirente no Recurso Extraordinário 718.874/RS, é possível verificar essa realidade a partir da constatação de dois fatos:

i) as alterações promovidas pela Lei 10.256/01 não tocaram o artigo 30, IV, da Lei 8.212/91, que trata da sub-rogação, mas se limitaram a “reintroduzir” o contribuinte rural pessoa física como contribuinte do Funrural;

ii) o recurso extraordinário foi interposto em ação ajuizada por produtor rural pessoa física, que não possuía a legitimidade processual3 para questionar em nome próprio uma cobrança direcionada a terceiro — o adquirente pessoa jurídica da sua produção.

A realidade é que o artigo 30, IV, da Lei 8.212/91 havia sido declarado inconstitucional nas duas outras ocasiões em que o STF tratou do Funrural, nos julgamentos dos recursos extraordinários 363.852/MG e 596.177/RS — este último com repercussão geral. E se a Lei 10.256/01, que foi analisada no Recurso Extraordinário 718.874/RS, não tratou da sub-rogação e não alterou o artigo 30, IV, da Lei 8.212/91, a única conclusão possível é que esses vereditos antigos se mantém, e o STF não alterou sua posição quanto ao artigo 30, IV, da Lei 8.212/91.

Nesse ponto, vale ressaltar que alguns dos ministros em seus votos no Recurso Extraordinário 718.874/RS se debruçaram sobre esse dispositivo e chegaram a afirmar a validade da sub-rogação do adquirente, como destacou a SC 92/18. Contudo, essas opiniões expressadas nos votos de alguns dos ministros não integraram a tese firmada pelo STF com efeitos de repercussão geral, pois esta se colhe a partir daquilo que o colegiado fala em uníssono, no acórdão pronto e acabado, e não a partir de recortes dos votos individuais dos julgadores.

Como transcrevemos alguns parágrafos acima, a tese firmada diz respeito apenas à cobrança contra o produtor rural, de maneira que as instâncias de julgamento inferiores, os tribunais e juízes, a rigor ainda estão obrigados a aplicar o entendimento firmado nos recursos extraordinários 363.852/MG e 596.177/RS — como de fato muitos continuam a fazer4.

Os excertos dos votos que trataram da sub-rogação citados na SC 92/18 têm grande potencial para desnortear os contribuintes, que em sua vasta maioria não possuem o treinamento jurídico necessário para ler de modo correto uma decisão judicial. A partir da leitura dos trechos dos votos pinçados pela Receita, o leitor leigo acabaria por concluir que o STF tratou da questão e definiu que a cobrança é válida, donde se sucederia uma segunda conclusão, de que não há mais espaço para discussão e o melhor é se resignar e pagar.

Em realidade, a obrigação do adquirente não foi analisada pelo STF e, na pior das hipóteses, desconsiderando os recursos extraordinários anteriores sobre o Funrural, é seguro afirmar que ela está bem viva e a balança pende em favor dos contribuintes, especialmente quando se considera que, por uma exigência do artigo 146, da Constituição Federal5, seria necessária lei complementar para instituir um novo contribuinte por sub-rogação, como bem lembraram os ilustres professores Mary Elbe Queiroz e Fábio Calcini, que há muito estudam o tema.

Toda manifestação fazendária que se propõe a interpretar leis para instruir os contribuintes precisa ser lida cum grano salis, pois é sempre uma interpretação inclinada à arrecadação e à instituição de mais deveres e mais obrigações aos contribuintes. Contudo, a SC 92/18 foi além dessa inclinação interpretativa e efetivamente acabou por justificar-se a partir da distorção pura e simples do veredito do STF, tentando induzir o contribuinte a pensar que a discussão sobre a cobrança do Funrural do adquirente estaria encerrada a favor do Fisco.

Enfim, a SC 92/18 está embasada em uma leitura falsa da tese firmada em repercussão geral pelo STF no Recurso Extraordinário 718.874/RS, de maneira que a Receita Federal colocou as palavras que quis no entendimento da corte maior com vistas a satisfazer o seu interesse arrecadatório. Esse fato, a nosso ver, retira toda a legitimidade da SC 92/18 e a desqualifica enquanto fonte de orientação idônea aos contribuintes, que não deverão considerá-la para medir suas chances de êxito em eventual impugnação à cobrança do Funrural.

 

 

1Eis breve excerto extraído do referido parecer:
“Conclusão
7. Com base nas exposições acima, conclui-se, portanto, que a resolução do Senado não pode suspender irrestritamente os incisos do art. 25 da Lei 8.212, de 1991, pois o STF já confirmou sua constitucionalidade, afastando qualquer questionamento em torno dos limites da declaração de inconstitucionalidade do Recurso Extraordinário nº 363.852/MG.
8. Nessa linha, entende-se, que as contribuições previstas nos incisos I e II do art. 25 e a obrigação da empresa adquirente de reter tais contribuições, são devidas desde a entrada em vigor da Lei nº 10.256, de 2001. A Resolução do Senado nº 15/2017 não é capaz de gerar qualquer efeito sobre os fatos geradores ocorridos desde então. […]”.

 

2 “Art. 121. Sujeito passivo da obrigação principal é a pessoa obrigada ao pagamento de tributo ou penalidade pecuniária.
Parágrafo único. O sujeito passivo da obrigação principal diz-se:
I – contribuinte, quando tenha relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador”.

 

3 “Art. 18. Ninguém poderá pleitear direito alheio em nome próprio, salvo quando autorizado pelo ordenamento jurídico.
Parágrafo único. Havendo substituição processual, o substituído poderá intervir como assistente litisconsorcial”.

 

4 https://www.conjur.com.br/2018-jun-02/empresa-liminar-suspender-contribuicao-funrural

 

5 “Art. 146. Cabe à lei complementar:
[…]
III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes”.

Fonte: Conjur

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